sábado, 1 de abril de 2017

candiru

com certo receio de cair entre o bar e a esquina, ele cambaleou até a música brega da jukebox simular um suicídio passivo. longe o suficiente para materializar a solidão que o preenchia no boteco, deslizou os dedos trêmulos sob a tela do celular até localizar o nome dela.

"oi, aqui é a Liza, deixe seu recado após o sinal, mas se for o Rodrigo, vai se foder. bipe."

"oi, cê sabe que sempre te contei tudo né? sabe aquela viagem? constantemente me lembro da garotinha vomitando uma sopa grossa e amarelo amarronzada na balsa que atravessou lentamente o rio Santo Antônio. naquela hora eu lembrei de tu. lembrei que queria ser um peixe. parece um daqueles segredos óbvios, mas os peixes não tem pálpebras. acho que eles nunca dormem. eu queria ser um candiru. acho que os peixes também não sabem chorar..." seus amigos logo sentiriam sua ausência. ou a ausência da escama. descobririam o banheiro vazio. mas ninguém o encontraria facilmente naquela esquina há três quarteirões de distância. a lua cheia brinca de pique esconde com as estrelas. onde há fumaça nem sempre há fogo. ou talvez toda a cerração tenha origem em uma alma que arde congelada por seus maiores medos. elas sempre avisam antes: "eu te amo" sempre soou como um eufemismo para "adeus filho da puta, acredite ou não eu sinto muito." em outra noite tão clara e sombria quanto esta, sua mãe partiu de casa, como das outras vezes, com sua bolsa enorme e um olhar sorridente. dez anos se passaram e ela nunca mais voltou para ser espancada. em outra noite como esta, ele foi expulso de uma balada, perdeu dois dentes no punho do leão de chácara, momentos depois de vomitar nos seios de uma stripper. suas mãos parecem uma moita de bambu no meio de uma tempestade, enquanto ele acende uma estaca pra relaxar e continuar o desabafo.

"...preciso aprender a esquecer. deviam inventar uma droga que causasse surtos de amnésia seletiva. eu me lembro da primeira vez que ouvi falar em um candiru. 5° série. entre as aulas cabuladas e as apalpadas nas bundas e nos seios em fase de crescimento das colegas de classe, meu amigo nerd do Lado Negro da força, Igor, era viciado em documentários sobre a natureza. sozinhos no mictório do banheiro da escola, ele me falou do demônio das águas amazonenses. mais temido que qualquer piranha, o candiru, o peixe-vampiro é um pequeno parasita das águas que ataca banhistas despreocupados. atraído pela urina ele penetra nos orifícios genitais ou no ânus. se alimentando do sangue de seus azarados hospedeiros, através de pequenos cortes. o candiru só pode ser removido com uma cirurgia nada agradável. suas nadadeiras se prendem na carne como ganchos. provocando hemorragias, infecções e a morte, caso não extraído com urgência. Igor me contou tudo isso com os olhos arregalados. ele devia saber sobre o complexo de castração. sempre tive dificuldades para fazer xixi na frente de outras pessoas. quando ele terminou de contar, eu consegui começar. Igor sempre foi pertubado, mas eu nunca imaginaria que ele faria aquilo. você nunca imagina que enquanto se concentra olhando pro espelho, seu amigo esquisito vai te contar sobre o canero e mentir que alguns peixes viajam centenas de quilômetros pelo encanamento. eu jamais poderia prever nada disso. eu entrei em choque quando Igor rapidamente apertou meu pau com a mão. me arranhou com as unhas, depois de alertar sobre o candiru e me falar para tomar cuidado. eu entrei em choque, enquanto ele gargalhava alto. nunca mais urinei em banheiros públicos. sempre encontro uma árvore sedenta por perto. falando em banheiro, hoje quando eu tava banhando eu percebi que tenho estrias na bunda. ninguém jamais deveria olhar a droga da própria bunda. talvez o primeiro homem capaz de se odiar tenha sido o infeliz que descobriu que o outro infeliz refletido em uma poça de água na verdade era apenas a representação de como as pessoas lhe enxergavam. se os deuses existissem eu aposto que eles jamais se aproximariam de um espelho. ou pelo menos manteriam suas partes mais semelhantes a uma bunda bem longe dos próprios olhos..."

quem nunca usou a caixa postal como divã? é só esquecer que alguém receberá a mensagem. é mais saudável que amigos imaginários. e mais caloroso que um diário. a regra número 33 do rolê é: nunca confie em companheiros de copo. eles podem te crucificar. "que vontade de fuder garota eu gosto de você fazer o que? meu pau te ama!" um grupo de jovens bêbados cantarola alto enquanto caminha na direção oposta. ele encosta o celular na bochecha para abafar a indesejada trilha sonora e continua:

"...essa ganja era da boa hein!? o que eu to falando mesmo? queria mesmo era dizer que a garotinha vomitando o líquido amarelo amarronzando, me fez querer ser um peixe. me fez lembrar do dia em que tu deu aquele P.T e não queria que eu percebesse. te levei pra casa e quando a gente se despediu eu te beijei momentos depois de tu vomitar. e porra! eu amei aquele beijo agridoce, queria que não acabasse nem com o tão esperado fim do mundo. acho que foi ai que eu percebi que te amava ou amo. sei lá. e que queria ser um candiru. se eu fosse o caralho de um candiru eu não estaria ouvindo o barulho da garoa como uma marcha funébre, nem sentiria a catinga de todas as minhas esperanças em estado avançado de decomposição. eu queria ser um candiru. se eu fosse o caralho de um candiru, eu jamais sairia de sua boceta. boa noite Liza."

alguém se aproxima. Igor, o amigo de Rodrigo traça um zigue zague na calçada com passos mais tortos que o olhar de um gambé.

"onde é que tu foi?"

"tava no telefone."

" e a escama?"

"só tinha um teco. cheirei."

" aham, to ligado filho da puta." Rodrigo sentou e ao lado de um bueiro e esquadrinhou seu all-star imundo. Igor notou a bad vibe e deu uns tapinhas nas suas costas.

"vem logo! Rodrigo! sai desse telefone cara! vamo beber!"

"me espera deitado no meio da rua."

"era a Liza né?... esquece ela velho."

"não quero."

"então fica aqui se molhando, ou melhor, vai escrever poeminha de amor otário."

"vai tomar no cu!"

Igor revirou os olhos: "quem tá tomando é você. não caias na perdição. nenhuma boceta vale um verso, muito menos um coração."

ray cruz

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