quinta-feira, 2 de março de 2017

outra crônica em um navio negreiro.

hoje parei de capinar o cascalho quase após o crepúsculo, então conversei com o filho do patrão que cursa filosofia. um leitor voraz de Nietzsche, Kerouac e Bukowski. consegui carregar seis livros e dois Cioran raros.
por conta da pressa, não tomei banho e quando percebi estava no busão, dreadlocks brilhando mais que a árvore do natal passado. purpurina até no cu. roupas sujas, puídas, quaradas e rasgadas. com galhos e folhas na cabeça...
enfim todos começaram a me olhar como um mendigo.
eu podia farejar o medo e o asco em seus olhares.
a cobradora nem me voltou os cinco centavos de troco.
então entendi porque os gatos brincam com a comida. o medo é um prato delicioso, quando o saboreamos nas pupilas alheias.
busão lotado.
uma senhora não conseguia parar de me fitar com o rabo do olho e algumas ousadas encaradas fulminantes.
a maioria das pessoas perto de mim tossia e tampava o nariz.
um infeliz com meias molhadas sentava ao meu lado e mesmo explicando seu chulé, todos me associavam ao odor.
então peguei Do Inconveniente de ter nascido e comecei a ler em pé. caí em cima de um cara e quando a senhorinha que me perscrutava leu o título, sua face se contorceu em uma careta digna de uma criança chupando limão.
eu gargalhei e me lembrei como é bom ser um pária.
quando o cara que amaciou minha queda se levantou eu sentei e li cada aforismo com uma lágrima em condicional e um sorriso criogênico. cinco páginas depois, estava em casa. o medo alheio as vezes é uma anestesia vital.

ray cruz

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