quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Du'Art

hoje, enquanto eu caminhava sedento, digerindo a necessidade de consolidar uma autoimagem e uma auto-estima positivas o suficiente para me permitir viver, um estranho me chamou.
quando me aproximei de sua casa, que consistia em uma mini-barraca improvisada com uma lona preta, que mais me parecia um enorme saco de lixo, ele me ofereceu um terço de uma barra derretida de chocolate.
pega ai, vamo dividir o pão, toma uma cachaça ai também.
valeu mano, mas eu queria era água mesmo, cê tem água ai?
respondi mordiscando educadamente a barra derretida.
tem, pega ai na minha casa, tá desse lado ai atrás.
ah, tu mora aqui?
moro. esses dias me roubaram um monte de coisas, colchão, coberta, um monte de coisas, mas eu acho tudo de novo.
é foda vey.
ao enfiar minha mão na porta de papelão não encontrei nada além do nada que preenche minha cabeça de vento, então espiei
e vi além do piso de chão cru, uma daquelas embalagens de desinfetante caseiro.
achou não?
não, acho que tá do outro lado.
pera ae.
aqui ó, pega um copo ai, bebe a água, depois bebe a cachaça.
encontro um pedaço de mini-PET verde, derramo as folhas secas, e despejo a água da embalagem de desinfetante caseiro que agora me lembra recipiente de posto de gasolina. bebo pelo menos uns dois copos daquela água quase morna, porém deliciosamente refrescante e depois tento dosar um gole da caninha.
valeu. eu tô tentando parar de beber.
eu parei tem algumas horas.
que massa, tu que fez?
falo apontando prum belo quadro, feito em um pedaço de qualquer coisa como madeirite envolta num tecido branco imundo, duma mulher garatuja triste com batom vermelho, lábios, vermelhos grossos, sanguíneos e descendentes, olhos abissais, seus cabelos pareciam linhas sinuosas que terminavam em espirais.
é sim, falta terminar ai eu vou entregar prum hippie fazer uns detalhes e dar pra uma mulher.
tu é hippie?
infelizmente não.
tu toca algum instrumento?
rs não, eu só estudo na unb. a única coisa que eu sei fazer é ler um livro e tentar entender ele.
eu conheço um lugar ali ó, na rua " que não me lembro" perto do "esqueci o que" onde trabalham com livros, tenta arrumar emprego lá, cê deve conseguir.
eu só estudo mesmo.
vai lá.
é que eu recebo umas bolsas pra estudar.
eu gostei muito do teu quadro, se pah tu faz um pra mim?
mas com certeza eles devem te contratar. vou começar a trabalhar lá semana que vem. já tá tudo certo. eu mexo com isso, aponta pro quadro e começa a escrever: arte eu, eu trabalhava numa gráfica, era engenheiro e mecânico, conserto peças.
aponta pra sucata em volta da casa e pra uma caixa de ferramentas igual a uma que meu pai tinha, quando eu tinha pai.
se eu tivesse grana compraria um quadro dele, penso eu. o alambique meio amarelado era dos bons, penso em seguida.
tu mora aqui?
sim, eu moro aqui, mas vou morar com a zenia lá "não me lembro onde", e tu mora onde?
eu moro em são sebastião, sabe onde é?
eu conheço, já passei por lá.
massa. qual o seu nome?
Du'Art.
Ray.
acho que...
tu faria um quadro desse pra...
vou bem ali...
ah, eu vou nessa.
eu também. vou ali no banheiro.
falou, vey, valeu, eu volto aqui depois.
ai me dá esse quadro?
pode ficar.
falou.
falou.
sigo caminhando e agradecendo as deusas pelo anjo que saciou minha sede e ainda me deu chocolate e cachaça e um quadro. essa com certeza foi a melhor coisa do meu dia. começo a rir sozinho.
continue falando com estranhos. falo sozinho.
talvez eu devesse ser amigo dele. não. a ultima vez que tentei ser amigo de um morador de rua aparentemente com problemas na cachola, terminei descobrindo que ele agrediu uma hippie. não vou mais encher marmita pro Fóton ou escutar ele falar do deus sol e esse cara pode fazer a mesma coisa. talvez. mas não devo esperar que ele seja alguém ruim. já estou indo na terapia pra parar de achar o tempo inteiro que as pessoas vão me fazer mal. talvez eu devesse comprar um quadro dele e lhe pagar um corotezinho. provavelmente eu nem verei mais ele. ele desenha bem. não vou encher marmita pra ele. seguiremos com nossas vidas de merda. ele lá, eu aqui ou vice versa. talvez ele seja o Basquiat de Brasília, mas eu não sou Andy Warhol.


ray cruz

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